segunda-feira, 9 de março de 2009







NÍSIA FLORESTA

A CARTA DE ISABEL GONDIM

E OUTROS TEXTOS MALDITOS





Observação: Este texto não está completamente revisado em termos gramaticais e com relação a ABNT. Em breve ficará pronto.



Luís Carlos Freire


Nísia Floresta - 1998


INTRODUÇÃO

Em 1993, transferi-me da Universidade de São Paulo para a UFRN, concluindo em 1997. Assim que cheguei a UFRN, fiz as provas no Programa de Inscrição para Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), financiadas pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e fui aprovado.
Como bolsista, integrei a Base de Pesquisa “Educação e Sociedade” do Departamento de Ciências Sociais, no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA-UFRN), coordenada pelo Professor Dr. José Willington Germano. Essa Base de Pesquisa desenvolvia o projeto denominado Levantamento e Catalogação das Fontes Primárias e Secundárias da História da Educação no RN no Séc. XIX, que era uma extensão do projeto de pesquisa do Dr. Demerval Saviani, da USP.
Nessa época eu já pesquisava Nísia Floresta, e recebi o aval do coordenador da Base de Pesquisa para intensificar os estudos sobre a referida escritora.
Durante a minha estada na UFRN apresentei diversos trabalhos sobre Nísia Floresta em seminários, congressos e conferências em Natal, no município de Nísia Floresta e em outros estados, inclusive todos os meus trabalhos inscritos para participar da Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência (SBPC) foram aprovados e publicados nos seus anais, os quais apresentei na Universidade Federal do Maranhão, Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia), Universidade Federal de Belo Horizonte (Minas Gerais) e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Com o passar dos anos escrevi outros trabalhos sobre o mesmo tema, inclusive adaptei a história de Nísia Floresta para o teatro com nativos de Nísia Floresta. Atualmente estou digitando o resultado de uma pesquisa na área de lingüística, iniciada em 1992, a qual apresento uma coletânea de expressões regionais nisiaflorestenses.
O trabalho que ora apresento se propõe a tratar a questão do mito que acercou Nísia Floresta ao longo dos anos, a postura de alguns pesquisadores e nativos de Nísia Floresta frentes a esse mito, e da omissão das autoridades com relação à importância que ela teve para o país.
Objetivei escrevê-lo motivado pelos questionamentos, pelas dúvidas e lendas que surgiram no decorrer da minha participação nos eventos citados, as quais, cuja maioria é permeada de preconceito.
Sabemos que a palavra “mito” possui mais que um significado, portanto, com relação à Nísia Floresta, nos deteremos ao mito representado por um ser envolto numa névoa de qualidades, defeitos difamações e incógnitas, residindo aí justamente o mito Nísia Floresta.
Nísia Floresta não é realmente mito, é lenda. Lenda viva. Tornou-se mito exatamente por razões circunstanciais que até hoje permeiam o imaginário popular.
A imagem que foi construída do “mito Nísia Floresta” mostra-nos uma figura indecifrável. Fazem-na em seu próprio município um espectro, o qual, na maioria das vezes revela a identidade de quem conta Nísia Floresta. O mito Nísia Floresta é mito porque os narradores sua história falam das suas origens, da sua cultura, dos elementos imaginários que lhes foram incutidos pela tradição ao longo do tempo, desconhecendo e se distanciando cada vez mais da verdade, ou seja, da história de uma intelectual de espírito superior, que deixou um legado respeitável.

LENDA, MITO E HISTÓRIA


“Prestará inestimável serviço às letras pátrias quem estudar criteriosa e demoradamente essa, por tantos títulos excepcional figura feminina, uma das primeiras da fase romântica entre nós.”


Em 1941, quando Henrique Castriciano prefaciou esta frase, na primeira edição do livro História de Nísia Floresta, de Adauto da Câmara, pareceu prever uma injustiça que se estenderia por muito tempo, e que embora tenham passados 94 anos de sua colocação, constatamos ainda certo alheamento acerca da história de Nísia Floresta. É muito mais comum encontrarmos pessoas comentando lendas sobre Nísia Floresta, que falando da Nísia real. Penso que isso se deve ao hábito que o brasileiro herdou do povo português, por sua vez herdado dos mouros que, quando contam uma História dão asas à imaginação. É fazer jus a velha frase: “quem conta um conto aumenta um ponto.” Mas existem razões para essa mitologia. É o que veremos.
Em sua cidade natal, antiga Papari, hoje Nísia Floresta, podemos ouvir estórias e difamações, segundo alguns nativos, embora não generalizadamente.
Uma ex-presidenta do NEPAM-UFRN, perguntou certa vez a um nativo de Nísia Floresta, quem tinha sido Nísia Floresta. A resposta foi hilária e surpreendente, a qual segue na íntegra: “Foi uma mulher muito importante. Ela foi atropelada na estrada do Porto e fizeram o seu túmulo ali na beira da estrada!”.
Podemos caracterizar diversos tipos de pessoas para se falar de Nísia Floresta em sua terra natal. Há o tipo ingênuo, que conta lendas e estórias sobre Nísia Floresta Há o tipo incisivo, que a retalha, desconhecendo completamente a história do personagem, tornando-a a mais vulgar das mulheres (o que, infelizmente, pode ser constatado até com certos professores); há o tipo dúbio (esse pode ser facilmente encontrado em toda a região), o qual possui a mesma opinião do tipo incisivo, que concebe uma Nísia vulgar, formalizada segundo os seus tabus e preconceitos, oriundos de uma cultura que ainda reduz a mulher a uma mera dona de casa, mas que, por “educação”, ou temeroso de quem o esteja questionando, prefere mudar o discurso – apresentando uma Nísia Floresta genial, embora não pense assim. Esse é o tipo dúbio. Há também o tipo, digamos rococó, que traça o perfil real, mas repleto de detalhes minuciosos, o qual, no decorrer dos relatos, se empolga e cria uma série de fatos novos, como por exemplo, uma professora que dizia a um grupo de alunos de um renomado colégio de Natal, que se encontrava em Nísia Floresta, numa aula de campo, que Nísia Floresta muitas vezes ia de carruagem do centro de Papari até a Estação Ferroviária que fica a quatro km dali, onde embarcava para Natal. O curioso é que quando essa estação foi construída, em 1882, Nísia tinha 72 anos, morava em Rouen, vindo a falecer 03 anos depois, sem nunca ter visto a Estação de Papari. Haja lenda!
Outro fato curioso deu-se na UFRN, onde fui convidado por uma turma de alunos para falar sobre Nísia Floresta numa sala de aula. Tamanha foi a minha surpresa quando um renomado professor pediu um aparte e colocou que Nísia Floresta era amante do filósofo francês Augusto Comte, o pai do Positivismo. Surpreendi-me, não por achar que aquilo era uma novidade, até porque é um dos assuntos mais questionados com relação à referida escritora, mas pela maneira preconceituosa e até mesmo pela falta de informação do professor. Ele afirmou, inclusive, que um dos seus pseudônimos “Augusta” é uma homenagem ao referido filósofo, conforme está escrito numa carta redigida por Isabel Gondim, em 1884. Tal inverdade foi jogada aos alunos como verdade absoluta, porém sem maiores argumentações. O professor usou como “prova” o romantismo contido nas cartas trocadas entre ambos.
Nós, pesquisadores, não podemos nos colocar como advogados e defensores perpétuos da integridade das figuras históricas, nem como sentinelas com esse propósito, considerando a liberdade de expressão de quem insiste em contestar a verdade. Enquanto o estudioso procura elucidar as lacunas deixadas pelos precursores, outros optam por polemizar, porém quando se trata de algo como o que colocou esse professor, é lastimável. É lastimável também termos que absorver isso como liberdade de expressão.
Quando Nísia conheceu Augusto Comte, em 1856, ela tinha 46 anos e ele 57. Era um homem doente e acamado que veio a falecer um ano depois de ter conhecido Nísia Floresta, em 1857. Parte do seu pseudônimo “Augusta”, ela já havia adotado há 34 anos, no Brasil, em 1832 , quando lançou Direito das Mulheres e Injustiças dos Homens.
O codinome era uma forma de homenagear o seu marido Manuel AUGUSTO de Faria Rocha, falecido em Porto Alegre aos 25 anos.
Sobretudo, Augusto Comte nutria um amor platônico por Clotilde De Vaux, sua eterna amada, inclusive seus últimos dias de vida, muito doente, foram de constantes delírios e devaneios, nos quais Clotilde divagava. No altar da Igreja Positivista do Rio de Janeiro podemos perceber a dimensão desse amor por Clotilde De Vaux, pois a imagem da Deusa da Humanidade existente ali tem seus traços inspirados em Clotilde.
Clotilde De Vaux foi quem exerceu papel importantíssimo na evolução do pensamento de Comte. Com relação aos seus projetos de renovação social, sob a forma de religião da Humanidade. É pouco provável que diante disso Nísia tenha sido sua amante. No aniversário de morte de Clotilde, Nísia Floresta escreveu para Auguste Comte emocionando-o com essas palavras dedicadas a sua amada:

“Nova Beatriz, teu nome passará às gerações vindouras com uma glória ainda maior, pois não é a admirável ficção de um grande poeta, mas a doutrina regeneradora de um grande filósofo que tira, por seu influxo, a mulher da degradação em que ainda se encontra. A ti, Clotilde de Vaux, as homenagens sinceras e o profundo reconhecimento de todas as mulheres de coração”. [Cf. LINS Ivan, O Positivismo no Brasil, p.22, cap. II: Carta de Nísia Floresta para Augusto Comte, de Paris, 5 de abril de 1857].

No que se refere ao romantismo contido nas cartas, todos sabemos que tal prática era uma característica da época, presente na literatura, pintura, música e etc. Não há indício algum de referência amorosa. Elas tratam de assuntos típicos de quem analisava e questionava a sociedade – ele como filósofo – ela como pode dizer, socióloga e jornalista (Esse lado jornalista é visível no Opúsculo Humanitário, Três Anos na Itália, Itinerário de uma viagem a Alemanha e em diversos artigos que escreveu em jornais, nos quais ela relata fatos com a mesma acuidade de um jornalista – o que nos faz constatar quão genial foi Nísia Floresta).
Em 1857, com o falecimento de Augusto Comte, as cartas trocadas entre ele e Nísia foram encontradas entre seus objetos pessoais, fato que deixa claro o respeito e a admiração que ele tinha pela ilustre brasileira, a qual quis fazê-la juntamente com a filha desta, adeptas do Positivismo.
Com certeza esse professor deve ter lido um artigo infundado escrito em 1986 na Folha de São Paulo, por Décio Pignatari, uma espécie de Salman Rushie à brasileira, ou um “caça polêmica”. Ao expor como o Positivismo chegou ao Brasil, diz, sarcasticamente, que isso se deu “... pela cama de Nísia Floresta”, insinuando que ambos eram amantes [Cf. Folha de São Paulo, 12.11.86].
No que se refere à adesão de Nísia Floresta ao Positivismo Comteano, isso nunca ocorreu por completo, pois Nísia estudou, fez sua leitura acerca de tal filosofia e assimilou apenas o que atendia a seus interesses intelectuais, como fazia com outras áreas do conhecimento.
Analisemos esse trecho escrito por Constância Duarte, no livro Nísia Floresta – Vida e Obra:

“Tanto foi apenas superficial sua identificação (de Nísia) com as propostas positivistas, que não se encontra em seus escritos nenhuma referência a Comte, ou à sua filosofia que não esteja diretamente relacionada com a melhoria da condição feminina. Ela, portanto, navega sim nas águas positivistas, mas em determinado momento – mais precisamente na definição de uma sociedade burguesa desenvolvida e moderna – enquanto a barca de Comte parece ir para outro lado, a de Nísia Floresta busca outros portos. A dele esbarra na intolerância a todo e qualquer questionamento de seus “dogmas”; e na contradição, patente, entre o princípio do amor – “viver para outrem” – e o do autoritarismo, a que se soma a disciplina despótica da “Religião da Humanidade”. E termina por naufragar, quando prega o princípio de força como o fundamento necessário ao governo e nega o direito natural, o pacto social, a liberdade de consciência.
A barca de Nísia – felizmente, é preciso confessar – passa ao largo dessas turbulências e encontra (ou re-encontra) outros rumos que a levam em direção a um pensamento mais identificado com o liberalismo revolucionário.
Em livros que vai escrever mais tarde, encontra-se a pregação apaixonada da liberdade para todos os povos, a abominação dos governos autoritários e o discurso anti-escravocrata que quer a integração (não domesticação, como os positivistas) dos escravos na sociedade”. [DUARTE Constância Lima, Nísia Floresta, Vida e Obra, Natal: UFRN. Ed. Universitária, 1995, p. 197].

Nísia Floresta foi uma intelectual ímpar. Uma mulher cujas idéias não estão ultrapassadas embora tenham passados 117 anos de sua morte.
Sem dúvida, é aceitável ouvirmos pessoas falando de uma Nísia Floresta nos moldes do que está escrito na carta de Isabel Gondim, pois não é de se estranhar que os conhecedores desse documento apresentem uma Nísia Floresta Vulgar, afinal trata-se de um Tratado de Desmoralização. Vendo por esse prisma é concebível que pessoas sem conhecimento da obra nisiana a denigra mediante a referida carta. Estranho seria conhecer a carta e achar Nísia Floresta uma santa.
O que não é aceitável é desmerecer a obra ímpar de uma escritora genial, motivado única e exclusivamente pela carta escrita por uma inimiga gratuita, instigada por seus tabus, preconceitos e fantasias. O inaceitável é desmerecer a obra ímpar e extensa de um gênio simplesmente motivado por uma carta escrita por uma geniosa sinhazinha instigada por seus tabus, preconceitos e fantasias. A propósito, reporto-me às palavras do professor Rodrigues Alves, de Natal, ao dizer: “Nísia Floresta era um gênio, Isabel Gondim geniosa”.
Normalmente, conhecemos muito do autor simplesmente lendo suas obras, as quais nos revelam as suas características pessoais e peculiaridades, permitindo-nos até traçar um perfil do escritor, mesmo que este não esteja escrevendo de si.
Embora a obra de Isabel Gondim seja interessante, podemos conhecer muito de sua pessoa na Carta Maldita (a qual permanece sendo o seu best-seller). Penso que se Isabel Gondim não tivesse escrito essa carta, estaria quase no completo anonimato. Por ironia e infelicidade ela quis refutar Nísia Floresta e acabou se auto-promovendo. A verve intelectual/cultural de Isabel Gondim, ao redigir a carta, não está nas entrelinhas, mas nas próprias linhas, as quais revelam muito da autora.
No livro História e Memória, de Jacques Le Goff, podemos encontrar a seguinte declaração de Marc Bloch: “A diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca, pode e deve informar-nos sobre ele”. [Cf. História e Memória, p.107, 1994].
A carta de Isabel é um documento real. É história. Não é fábula. Mas trata-se de um documento histórico que criou uma fábula e, de certo modo o mito acerca de Nísia Floresta. Pelo fato de a carta ser real, muitos acabam por acreditar em seu conteúdo enquanto documento concreto, enquanto material histórico, ignorando ser irreal enquanto informação. A informação sobre Nísia é falsa num documento verdadeiro. Pesa ainda o fato de elas serem paparienses, conterrâneas, e, podemos dizer: “contemporâneas”, além de ela ter, estranhamente, escrito que a família de ambas tinha estreitas relações. Não é difícil acreditar na carta.
Jacques Le Goff escreveu:

“A crítica externa visa essencialmente encontrar o original e determinar se o documento examinado é verdadeiro ou falso. É uma atuação fundamental e exige sempre duas observações complementares. A primeira é que um documento “falso” também é um documento histórico e que pode ser um testemunho precioso da época em que foi forjado e do período durante o qual foi considerado autêntico e, como tal, utilizado”. [ibid.109 e 110].

Em detrimento do que expôs Le Goff, é comum reportarmos, em caráter de exemplo, ao Santo Sudário que é um documento que percorreu dois milênios entre afirmações de verdadeiro e inquestionável, e agora os cientistas revelaram que é falso. Apesar de tudo o Sudário é histórico (por ter 2000 anos), é história (por tudo o que o acercou no decorrer do tempo) e é mito (por tantas fantasias originadas).
Ao redigir a carta, Isabel Gondim não deixou de expor alguns detalhes verdadeiros sobre Nísia, embora mínimos, por exemplo: o nome da escritora, pseudônimo, título de livro, nomes dos pais e outros poucos detalhes verdadeiros. Ela escreveu sobre uma figura real, expôs algumas informações reais, mas primou por tecer uma infinidade de informações fictícias, por exemplo, é falsa e antagônica a informação de Isabel Gondim no que se refere ao fato de as famílias de ambas terem estreitas relações. Falsa porque Nísia Floresta nasceu quando Isabel Gondim já tinha quase três décadas de vida, e antagônica porque é de se estranhar que uma família conservadora como a de Isabel Gondim, tivesse estreitas relações com uma família totalmente liberal como a de Nísia Floresta, cujo chefe do lar era “um português de maus instintos”, a mãe, “uma mestiça”, e a filha “uma mulher de vida livre”, como ela escreveu. Lembremos que o famoso viajante inglês, Henry Koster, quando visitou o Brasil em 1810, relatou o tratamento inusitado, passado na residência do Sr. Dionísio Pinto Lisboa, no qual as mulheres da casa se colocaram à mesa de refeição junto com os homens – no caso Dona Antonia Clara Freire, a esposa; Maria Isabel, a filha; e certamente Pepé, a escrava descrita futuramente por Nísia Floresta.
“A crítica interna deve interpretar o significado dos documentos, avaliar a competência do seu autor, determinar a sua sinceridade, medir a exatidão do documento, controla-lo através de outros testemunhos”. [Ibid, p.110].
Isabel Gondim faleceu em 1933, aos 94 anos, exatamente quando a carta completara meio século de existência. Com certeza estava esquecida, mas guardada por alguém. Sabemos que a autora desta (educadora e escritora) era uma figura, a seu modo, enfronhada no meio literário e intelectual de uma Natal minúscula (uma província). É pouco crível que ela não tivesse tomado conhecimento de alguns acontecimentos que reverenciavam e enalteciam a figura de Nísia Floresta (conferências, artigos jornalísticos, ensaios, o monumento construído sobre as ruínas da casa onde Nísia viveu, erigido em 1909, e outro em Natal, na Praça Augusto Severo, além dos próprios livros de Nísia Floresta, pois alguns chegaram a Natal). Pesa ainda que muitos homens notáveis, admiradores de Nísia Floresta, como Henrique Castriciano, Adauto da Câmara, Joaquim Grillo, Oliveira Lima foram contemporâneos de Isabel Gondim. Em 1919, ela fez questão de presentear Oliveira Lima com uma cópia da sua carta, quando este acabara de organizar uma conferência exatamente sobre Nísia Floresta. Insatisfeita, fez muitas cópias e as distribuiu indiscriminadamente numa assumida campanha de difamação.
Drª Constância Lima Duarte, logo após comentar sobre um texto que Câmara Cascudo escreveu sobre Nísia Floresta, nos diz:

“A campanha de difamação e calúnias empreendidas sobre a conterrânea, em seu início, principalmente por Isabel Gondim, dava os resultados esperados. Nísia Floresta era “sepultada” entre eles ainda quando vivia em terras estrangeiras. Durante algumas dezenas predominaram comentários maldosos, o desprezo, o escárnio e a dúvida, principalmente entre os norte-rio-grandenses. Nísia Floresta não era motivo de orgulho, mas de vergonha para muitos” [Nísia Floresta Vida e Obra, pág. ....]

É nítido que Isabel Gondim sentia certo prazer em denegrir Nísia Floresta, pois foi indiferente a tudo o que a enaltecia. Isso, até que se prove o contrário, pode ser concebido como ódio, mas um ódio inexplicável e gratuito. Ela tinha convicção de que sua carta era verdade inquestionável e, portanto, jamais quis desdizer o que afirmara, embora tivesse tempo e oportunidade suficientes.
Isabel Gondim insistiu em dizer que não era Nísia Floresta quem escrevia os seus livros, afirmando que o autor era Manoel Augusto, o seu marido. Eis um trecho ipsis literis da página 10: “Ahi, por auspícios daquelle estudante foi ensaiando algumas composições metrificadas, ligeiras, que acordaram serem em seu nome”.
Atribuir a autoria dos escritos de Nísia Floresta a Manoel Augusto é um absurdo, considerando a essência e o estilo nisiano, logicamente amadurecidos com o passar do tempo, mas que sempre seguiram uma linha de raciocínio.
Na página 9, Isabel Gondim afirma que foi o marido de Nísia Floresta quem escrevera uma novela que é tida como de autoria desta, usando, inclusive, o termo “plágio”. Veja: “... cujos textos tomados de obras diversas, eram ligados entre si por soldas, segundo diziam os críticos, feitas pelo referido estudante Augusto”. Urge questionarmos que novela é essa, e quem são esses críticos, pois não existe nenhum documento contemporâneo a Isabel Gondim que contenha críticas a Nísia Floresta, no que se refere a essas colocações. Pesquisadores não faltaram para revirar uma série de instituições a procura de tais críticas. Particularmente, garimpei todos os lugares em Natal que pudessem arquivar tais documentos, em vão. Pode ser que um dia alguém encontre essas críticas, mas por enquanto, em se tratando de ter existido esse tipo de material no período que Isabel Gondim viveu, o único documento dessa natureza é a sua própria carta.
Chamo a atenção também para o detalhe do machismo de Isabel Gondim: ao atribuir a autoria dos escritos de Nísia Floresta ao marido Augusto, permite-nos subentender que uma mulher não teria competência para tanta ilustração.
Mais adiante, após escrever muita coisa, inclusive sobre a estadia de Nísia no Rio Grande do Sul, sua viuvez, seu retorno ao Rio de Janeiro, numa flagrante contradição, Isabel Gondim parece esquecer que Augusto, apontado como autor das obras de Nísia Floresta, tinha morrido, esquecendo também de apontar um novo co-autor, pois ela mesma escreveu nas páginas posteriores que o marido de Nísia Floresta havia falecido. Convém apreciarmos esse trecho da carta:

“... publicou como de sua composição em quase todas as línguas cultas da Europa diversas obras, sempre em estylo fluente, por vezes vigoroso e elevado tanto em prosa, como em verso, segundo a respeitável e esclarecida opinião de alguns de seus admiradores talvez pouco escrupulosos na investigação da inexhaurível fonte de tanta sciência e illustração sem que tivesse aquela que assim ostentava grandes conhecimentos feito imprecisos regulares estudos no torvelinho da vida agitada que levou dentro do paiz quase constante essa nessas disttrações, bem como da perspectiva de novas figuras que surgissem-lhes a apreciação”. [p.15]

Quem seria o “outro autor” dos trabalhos que Nísia Floresta continuava publicando após a morte de Augusto, “... em estilo fluente, por vezes vigoroso e elevado...”? Constatamos no trecho acima que ela leu ou ouviu: “... a respeitável esclarecida opinião de alguns de seus admiradores...” Porém, movida por uma negação tirana, ela ainda denigre esses admiradores, como se fosse proibido admirar Nísia Floresta, julgando-os “... pouco escrupulosos na investigação na inexhaurível fonte de tanta sciência e illustração...”. E não admite em hipótese alguma que Nísia Floresta fosse a autora legítima dos trabalhos que lançava, e tampouco uma mulher de boa conduta moral.
Contraditoriamente ela escreve que o pai de Nísia Floresta era “um português de maus instintos”, sem justificar tal colocação. Em outra página afirma que ambas as famílias possuíam estreitas relações de amizade. Eis aí outra contradição. Como seria possível a uma família tão conservadora como a de Isabel Gondim ter uma amizade tão estreita com a família de Nísia Floresta, sobretudo tendo no seio dessa família um “português de maus instintos”, uma filha “adúltera” e uma mãe viúva, a qual, diferente aos padrões da época, casara-se pela segunda vez, sobretudo uma “mestiça”, como é rotulada por Isabel Gondim em caráter de desmerecimento. Tais denominações eram suficientes para causar rejeição na sociedade, portanto a citada estreita relação entre ambas as famílias soa muito estranho. A autora perdeu-se numa inexplicável contradição.
Ao escrever:

“Entretanto Dionysia Pinto, após haver exhibido, sem rebuço, na capital do Rio Grande do Norte a vida livre que adaptara, resolveu transferir-se ao Recife, phantasiando talvez se lhe deparar nessa cidade campo mais vasto as suas aspirações.” [p. 7]

percebemos que ela não consegue ver Nísia Floresta de outra forma, senão como uma mulher que estivesse constantemente atrás de homens para saciar seus instintos promíscuos. A expressão “vida livre” tem hoje a mesma interpretação da época, ou seja: “vida promíscua”. Isabel Gondim parece alimentar uma paranóia quanto uma “Nísia-puta”. Se formos nos enveredar pelos caminhos da psicologia para explicar a atitude de Isabel Gondim, ficaríamos um tanto constrangidos, no que se refere à projeção.
Vejamos esse trecho: “Nesse caráter, embora ostentando a gravidade da viuvez, contudo não renunciou a irregular conducta continuou nos antigos desvarios, a princípio com certa velada reserva”. E: “O infeliz Manuel Alexandre o esposo ludibriado não havia, entretanto esquecido a affronta que desde algum tempo lhe irrogara essa mulher dissoluta”. [ps. 11 e 12].
Aqui percebemos as claras acusações de adultério.
A psicose era tanta que Isabel Gondim chega ao ponto de imaginar o que Nísia Floresta ia fazer em Recife. “Ela parece esquecer que sua conterrânea, com apenas 20 anos, se inaugurava no mundo das letras, publicando o Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens”, após um período de participação no jornal O espelho das Brasileiras. Recife era para o Brasil, à época, o que Paris era para a França quando nesse país ela viveria o auge da sua carreira literária. Os motivos que a atraiam ao Pernambuco se explicam pelo fato de ser esse estado um grande centro cultural e promissor, berço de muitas novidades intelectuais que se afinavam com o seu espírito elevado.
Lembremos que tal carta era uma resposta a J. L. F. Souto. Podemos supor que essa pessoa desconhecida nutria muita curiosidade acerca de Nísia Floresta e recorrera a Isabel Gondim pelo fato desta ser sua conterrânea, inclusive o Sítio Floresta, onde Nísia Floresta nasceu, fazia divisa com o sitio da família Gondim. Hoje, por ironia do destino, a família Gondim é dona de duas grandes partes da área que foi o Sítio Floresta. A cerca que separa o sitio da família Gondim do túmulo de Nísia está fincada a menos de um metro deste.
Pela curiosidade de J. L. F. Souto podemos também supor que em pleno ano de 1884 ele pretendesse também publicar algum trabalho sobre Nísia Floresta, quem sabe sua biografia, como faria Adauto da Câmara, 57 anos depois, em 1941. Que surpresa deve ter tido J. L. F. Souto ao ler o Tratado de Desmoralização escrito por Isabel Gondim? Se houve essa intenção por parte de J.F.L. Souto, a carta colocou uma pedra sobre tudo.
Em se tratando de uma conterrânea e “contemporânea” de Nísia Floresta, embora Isabel fosse 29 anos mais nova, tornava-se fácil acreditar no teor da carta. O que J. L. F. Souto desconhecia, com certeza, era que Isabel Gondim nunca tinha visto Nísia Floresta.
Supostamente ele imaginava que ambas se conhecessem e que suas famílias fossem amigas. Dessa forma Isabel Gondim era a pessoa mais indicada para escrever sobre Nísia Floresta. Algo também muito curioso é o fato de uma mulher tão conservadora como Isabel Gondim, vivendo numa cultura tão fechada, não se intimidasse em escrever certas particularidades exatamente para um homem, onde faz uso de termos pouco convencionais, os quais, pela realidade da época, eram típicos dos raros livros de contos eróticos existentes, a propósito, como mandava o figurino, todos escritos por homens.
“Indecorosa”, “dissoluta”, “exibindo os seios”, “adúltera”, etc., são colocações de Isabel Gondim. Lembremos que ela nunca viu Nísia Floresta. Podemos supor que ela, em seu devaneio de ódio gratuito, transpôs a imaginação, quebrou o protocolo de uma época e, involuntariamente, inaugurou uma espécie de conto erótico no Brasil, escrito por uma mulher.
Pelos padrões da época a carta de Isabel Gondim teve um misto de novela erótica, basta pesquisar tal assunto nos livros dispostos naquele tempo, os quais eram tão sutis que, comparados a atualidade, podemos dizer que tratavam-se de histórias infantis – ao contrário da carta – por sinal muito apimentada. A julgar pela concepção de erótico da época, podemos constatar que a própria carta de Isabel Gondim foi indecorosa - e sua autora muito corajosa por sentir-se tão à vontade escrevendo justo para um homem. Por esse raciocínio, tal carta não deixou de causar certo rubor nas pessoas que a leram (inclusive em J.F.L.Souto). Tomemos como um pequeno exemplo o livro O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, obra considerada uma afronta a sociedade do século XIX, por abordar um tema muito polêmico. Um “verdadeiro atentado ao pudor”. Hoje, as escolas recomendam tal livro, dentre obras de Machado de Assis, Camilo Castelo Branco, Castro Alves e outros escritores.
No que se refere a J.F.L. Souto, terá existido essa pessoa? Ou J.F.L. Souto não apenas protagonizou um meio como pretexto para Isabel Gondim destilar o seu ódio gratuito? A carta não mostra sequer uma qualidade em Nísia Floresta. Isabel Gondim era a única pessoa letrada que via Nísia Floresta dessa forma, enquanto seus demais contemporâneos a idolatravam. Ao criar um protagonista (o destinatário) ela teve uma boa justificativa para divulgar a visão que tinha sobre Nísia Floresta, cujo objetivo era destruí-la, entretanto, nessa aventura, ela contribuiu com o surgimento do mito, e, sem querer, projetou-se também.
Isabel Gondim foi a precursora do mito que acercou Nísia Floresta, possibilitando, com a sua carta, a inspiração para muitos artigos difamatórios, os quais até hoje figuram nos jornais.
Ela inaugurou essa imagem mítica sobre Nísia Floresta, tanto o mau mito quanto o bom mito. Bom mito porque a fama da sua carta desperta as pessoas a ler sobre Nísia Floresta.
No decorrer do tempo, numa série de artigos preconceituosos, que até recentemente povoavam os jornais, escritos por pessoas que mal conhecem a obra de Nísia Floresta, o mito foi se fortalecendo e tomando uma dimensão muito maior.
Colocações como: “indecorosa”, “machona”, “monstro sagrado”, “persona non grata”, “puta erudita” e etc., feitas por pessoas diversas, em momentos diferentes, mescladas com: “notável, gênio, audaciosa, feminista, revolucionária...”, etc, fizeram com que muitos vissem Nísia Floresta como uma figura indecifrável – um mito. Para muitos Nísia Floresta é a fusão de tudo isso.
A afirmação de Pignatari, de que o Positivismo Comteano chegou ao Brasil pela cama de Nísia Floresta, aludindo a um possível caso entre ela e Augusto Comte, foi escrito em l986. Não é sabido se Pignatari leu a carta de Isabel (lembremos que ela não falou nesse assunto na carta). O que pretendo é refletir sobre a tendência que muitos têm em denegrir a figura de Nísia Floresta, ignorando o seu legado. É como se ainda vivêssemos no séc. XIX, pois a sociedade atual, que ainda tem muito de conservadora, recebe Nísia Floresta meio de esguelha.
Em 1991, o jornal O Diário do Povo, de Campinas, São Paulo, publicou no dia 3/8 um artigo de autoria de Maria José Tarube (Coordenadora do SOS Mulher de Campinas), que diz: “Em 1850, Nísia Floresta Brasileira Augusta fundou a primeira escola para meninas no Rio de Janeiro, sendo expulsa do Brasil por lesbianismo”.
Sobre essa infundada e preconceituosa colocação, Drª Constância Lima Duarte, estudiosa da vida e obra de Nísia Floresta, escreveu:

“Mesmo acreditando que não há preconceito nesta afirmação, mas apenas uma manipulação do nome da escritora para endossar opções pessoais, é preciso ver que a desinformação não contribui em nada, a não ser, claro, para aumentar o preconceito de outros em torno dela” [DUARTE Constância Lima, Nísia Floresta Vida e Obra, UFRN, Ed. Universitária, 1995, p. 72 – nota de rodapé].

Em 1985, a escritora, jornalista e professora Socorro Trindade (hoje aposentada pela UFRN) escreveram um artigo rotulando Nísia Floresta de “puta erudita”. “Nísia Floresta é mito ou persona non grata?” Com esse título ela diz: “Nísia Floresta tornou-se mito por ser maldita” e “para desvendar-lhe o mito é necessário desvendar-lhe a sua maldição”. [Cf Tribuna do Norte, “Caderno de Domingo”, Natal, 28 de abril de 1985].
Ela também reconheceria a genialidade de Nísia Floresta, mas estigmatizando-a dessa forma. Tal artigo, muito polêmico, instigou vários intelectuais a escreverem outros com a finalidade de rebater as acusações de Socorro Trindade.
Toda essa miscelânea jornalística sobre Nísia Floresta – uma hora “escritora notável” – outra hora “puta erudita”, vem colaborando de uns tempos para cá com um maior estudo sobre o assunto, inclusive no próprio município em que ela nasceu tem acontecido seminários e conferências sobre sua vida e sua obra, onde organizei quatro eventos, a propósito com a participação de respeitáveis estudiosos do assunto. Evento igual ocorreu na Capitania das Artes em 2002, organizado pela Academia Feminina de Letras. Não obstante, o Dicionário de Mulheres do Brasil, organizado por Schuma Schumacher e Érico Vital Brazil, publicado no Rio de Janeiro em 2000, traz referências importantes sobre a escritora, bem como livro Biografia da Cidade de Natal, do poeta Diógenes da Cunha lima, publicado em 1999.
Normalmente a imagem da Nísia-mito chega às pessoas contada com o entusiasmo dos que narram uma fábula. Isso faz com que o mito se avolume, sobrepujando o que se tem de mais interessante e precioso, que é a sua obra como um todo, a qual é relegada frente ao mito. Para um público fantasioso e pouco chegado a leitura, o mito “encanta”, portanto é mais interessante conservá-lo.
É necessário que matemos o mito ou façamos o possível para matá-lo, embora seja uma ação quase impossível diante da sua dimensão, pois o imaginário popular é algo muito forte. Poucos param para ouvir a “nova história”. O mito é parte da tradição, e para se quebrar uma tradição é preciso que se esperem anos a fio, batendo na mesma tecla. Nesse sentido, as conferências e os seminários ocorridos em Nísia Floresta têm papel importantíssimo.
Podemos usar como exemplo a atitude de Nísia Floresta quando expôs suas idéias revolucionárias para o “Rio Beato”, conforme escreveu Rachel de Queiroz na revista O Cruzeiro. O que se poderia esperar de uma sociedade hiper-conservadora diante das idéias futuristas de Nísia Floresta? Entrementes, devemos insistir em mostrar a história real, mesmo que grande parte dessa sociedade resista - o que é uma reação comum e aceitável.
Nesse aspecto podemos nos reportar a experiência da escritora maranhense Rita Ribeiro, autora do livro intitulado Ana Jansen (RJ, Record, 1995) o qual desmistifica (ou pelo menos tentou desmistificar) toda a lenda sobre essa mulher que incomodou os governantes no Maranhão, com atitudes singulares e revolucionárias – impossíveis de serem aceitas como de autoria do “sexo frágil”, e que até pouco tempo continuava incomodando, mas como uma assombração que perambulava pelas ruas de São Luiz.
Rita Ribeiro recontou a história de Ana Jansen, fruto de muitas pesquisas, as quais permitiram-lhe através dos velhos documentos corroídos, amarelecidos e esquecidos por todos, revelar o outro lado da moeda, lado esse que cunhava uma mulher real, geniosa logicamente, mas revolucionária – figura muito distante da contada pelo imaginário popular. O curioso é que a pesquisadora trouxe à luz a história de diversos contemporâneos de Ana Jansen, inclusive de homens públicos e reverenciados, cujos nomes foram dados a diversos órgãos públicos, em sinal de eterna homenagem, mas que à sua época foram verdadeiros tiranos e sanguinários.
Conforme declarações da autora, numa conferência realizada no NEPAM-UFRN, ela teve sérios problemas com as autoridades do Maranhão quando lançou o livro, pois descendentes dos “homenageados tiranos” e algumas pessoas protestaram, recusando aceitar tais revelações.
Ocorreu com as revelações do livro um fato curioso, vejamos: Ana Jansen, vista pela tradição apenas como perversa, assassina e promíscua, foi apresentada, de uma hora pra outra, como uma mulher influente – uma líder, embora temperamental e de certo modo, orgulhosa, até porque ela cobiçava o título de Baronesa de Santo Antonio. Um sobrinho seu, deputado, reivindicou diversas vezes tal título a favor da tia, mas todos foram negados por D. Pedro. Enquanto o livro Ana Jansen refutava a imagem sanguinária dessa personagem, ocorria o oposto com homens ilustres do passado, os quais foram desmascarados e, de certo modo, execrados.
O referido livro, obviamente, não podia ser aceito com tanta facilidade, pois trazia uma “nova história”.
Algo similar ocorre com a história e as estórias do Padre Cícero Romão Batista, o “Padim Ciço” do Juazeiro do Norte. Muitos acreditam e afirmam, dentre uma infinidade de atitudes sobrenaturais, que ele colocava o seu chapéu na parede lisa, sem nenhum gancho e este ficava seguro. Se dissermos que essa “verdade” é mentira, poderemos ser linchados por incontáveis beatos, pois o “Padim Ciço” é um mito, ou melhor: um santo.
Muitas estórias são contadas sobre ele, oriundas do imaginário popular católico, inclusive a própria literatura do gênero colabora com tal imagem mítica – há livros que o endeusam, principalmente os de Cordel e há uma vasta bibliografia que contesta tudo. Entre o ser e o não ser (real) fica o mito. A própria Igreja Católica, inclusive o Papa da época condenou todo aquele reboliço, inclusive chamou o Padre Cícero e o reprovou, mas o próprio padre não conseguiu jogar água naquela poeira feita de uma fé cega e incontestável. O mistério exerceu (e ainda exerce) no povo a magia que os contos de fada exercem (ou exerciam) nas crianças. O mito era tão grande que mereceu uma estátua do seu tamanho (do mito), erigida quando o padre ainda era vivo.
Refletindo por esse prisma, podemos facilmente entender todo esse nevoeiro que se assenta sobre a imagem de Nísia Floresta no decorrer do tempo, a julgar pela separação do marido, pela singularidade da suas atividades intelectuais, pela carta de Isabel Gondim e pelos inúmeros artigos preconceituosos e difamatórios que foram se desencadeando. Ora, como é que de uma hora para outra poderíamos ter uma nova concepção sobre Nísia Floresta, se essa imagem tão surrada era também a mais divulgada? Mas o que mudou na realidade não foi Nísia Floresta, e sim a sua história que estava mal contada – e que precisava ser recontada.
Alguns pesquisadores endossam opções pessoais em torno do seu objeto de estudo, o que infelizmente é uma prática muito comum.
Quem realmente conhece a história e a obra de Nísia Floresta (inclusive as estórias populares) não dá espaço para o mito. É fazer valer a lei da Física: “o mesmo espaço não pode ser ocupado por dois corpos ao mesmo tempo”. O espaço de Nísia Floresta é dela e de sua obra – e não dela junto com o mito.
Quando somos levados a falar sobre Nísia Floresta, não podemos dar ênfase a tantos rótulos preconceituosos, e sim enfatizar a Nísia Floresta que deixou uma história e obras riquíssimas, inclusive como precursora de diversas causas, as quais são dignas de serem estudadas principalmente pelos potiguares. Isso não impedirá a discussão do mito, mas como um detalhe menor.
A função do pesquisador e do professor é mostrar que a ficção nunca deve superar a realidade.
Não pretendo com isso ter a ingênua intenção de exigir que deva existir um padrão para se falar de Nísia Floresta – e que esse padrão se fundamente apenas nas minhas palavras – mas primar pela verdade e pela valorização de um dos principais ícones do Rio Grande do Norte.
Em 1992, ao realizar um trabalho de História Oral em todo o município, encontrei alguns raros idosos e um respeitado professor que ainda sabiam de cor um poema anônimo sobre Nísia Floresta. Com o desenrolar dos anos fui me envolvendo cada vez mais com o tema, e esse Hino a Nísia Floresta (como é chamado) acabou sendo lançado em CD, durante uma conferência que reuniu no município respeitáveis intelectuais e escritores, através da minha iniciativa. O hino era desconhecido em todas as escolas do município, correndo, assim, o risco de ser esquecido. Vejamos:

Salve, oh filha imortal dessa terra
Terra ardente de ríspido sol
Que somente em beleza
Mãe fecunda de bravos heróis.

Surge, ressurge, brilha
Oh Nísia! Sublimada
Oh sempre terna
Filha da terra bem amada
Da terra bem amada.


Essa glória é a tua, essa glória
Os vindouros melhor guardarão
Hoje emerge do fundo da história
Sob auréola de excelso clarão.

Tu que às plagas estranhas levaste
O teu nome, o teu nome eternal
O teu nome obscuro encerraste
No esplendor de uma glória imortal.

Percebemos que num passado distante, a julgar pelo estilo e pelo português, alguém deixou sua impressão e admiração sobre Nísia Floresta, conhecendo ou ignorando o mito, a propósito, o mito não é nem tanto uma maldição. A carta, sim, é maldita. Como já foi dito, o mito deve ser discutido quando necessário, inclusive para desmistificá-lo é necessário que o evoquemos. É falando dele, através dos questionamentos que nos forem dirigidos, que o exorcizaremos. Assim o imaginário popular vai sendo encurralado e se dissipa, ficando apenas o que é real.
No último parágrafo da carta de Isabel Gondim, numa atitude atípica de quem está encerrando uma carta, ela volta a bater na cansada tecla:

“Em suas excursões a São José veio attrahir-se Manoel Alexandre a Dionísya Pinto que a sobraçar uma guitarra e a exhibir-lhe os seios constituira-se em grande parte o enlevo dos excursionistas e particularmente daquele moço que logo conterrâneos, conhecido, como acima disse pelo nome de Nysia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo do seu verdadeiro nome Dionísia Gonçalves Pinto”. E assina “Isabel Gondim. Natal, 2 de março de 1884”. [p.15 e 16]

Ela iniciou e terminou a carta com um único propósito: denegrir Nísia Floresta.
Ao mostrar uma Nísia Floresta devassa não se vê novidade, mas é pouco crível que uma adolescente de 13 anos, em pleno ano de 1823, se colocasse com os seios à mostra, tocando uma guitarra para um bando de homens numa festa. A moralidade e as leis da época eram muito severas para tolerar tamanha afronta. Mas surge aí uma novidade: a Nísia Floresta “guitarrista” e quem sabe “musicista”. Foi esse o único talento que Isabel Gondim atribuiu à sua inimiga. Interessante é que Nísia Floresta nunca fez referência alguma ao fato de saber ou não tocar guitarra.
Diante de tantas reflexões, é importante refletirmos a questão da análise que o pesquisador deve fazer com relação ao estudo da obra deixada por Nísia Floresta e a vida particular dessa intelectual. Se acaso Nísia Floresta tivesse sido tudo o que Isabel Gondim escreveu e que outras pessoas foram escrevendo no correr do tempo, o que isso representa com relação a sua produção intelectual tão importante para o ontem, hoje e para o futuro? Sobretudo, a vida particular de uma pessoa não pode e não deve ser parâmetro para que uma sociedade a inclua ou a exclua, negando-lhe sua genialidade e ilustração, desprezando o seu reconhecimento.
O pesquisador não pode criar padrões para a sua pesquisa, colocando a intimidade da figura histórica como fator determinante, instigando-lhe o desprezo, acaso o objeto de estudo tenha tido uma vida íntima ou social problematizadas. A pensar por aí o que seria da obra de tantos gênios da história universal, cuja intimidade de muitos fugia (e ainda foge) dos padrões considerados normais? Se fosse assim, não conheceríamos o legado de figuras geniais.
Não podemos negar que Nísia Floresta teve uma vida particular problematizada. Isso ocorreu quando ela se separou do marido com menos de um ano de casada, provocando um escândalo na família e na sociedade, entretanto ela não deu motivos maiores para que o seu nome fosse tão maculado. A simples separação foi o bastante para originar a sua má fama, e Isabel Gondim aproveitou-se desse fato para arquitetar a carta.
Logicamente que toda a vizinhança do Sítio Floresta, inclusive os familiares de Isabel Gondim, tiveram muito que comentar diante desse fato pouco comum. A vida alheia era um prato cheio numa minúscula vila onde todos sabiam quem era quem. Época em que o homem ainda não tinha inventado o rádio e a televisão. Todos os olhares se voltavam para o beabá de casa e a vida alheia. As mulheres – fiéis ao estilo mouro – importado de Portugal – eram confinadas dentro de casa –, engordando. Da cozinha – lugar que homem sério não podia entrar – para as prendas domésticas. As famílias, extremamente conservadoras, tinham mais que fabular. As noites escuras, repletas de estrelas vigilantes, escondiam mil segredos. Todo esse clima de mistério instigava a imaginação de velhos e crianças, os quais se deliciavam com estórias extraordinárias contatadas à noitinha. Nesse convívio exercitavam naturalmente a imaginação, portanto a atitude de Nísia Floresta foi “fabulosa” - o melhor assunto.
Nesse aspecto podemos nos reportar às maravilhosas fábulas dos Irmãos Grimm, as quais faziam um sucesso indescritível, à época, completamente diferentes de hoje. Apesar de continuarem maravilhosas, são quase que totalmente desconhecidas, pois num universo de tanto encanto tecnológico, poucos se detêm a apreciá-las. A história de Nísia Floresta tinha talvez mais encanto do que as fábulas maravilhosas dos Irmãos Grimm.
Creio que Isabel Gondim seja mais conhecida por ter escrito essa carta, do que por sua obra em si, pois todo mundo fala dessa carta e, ao falar dela, é necessário falar de sua autora Isabel Gondim.
Isabel Gondim nasceu em 1839, ocasião em que Nísia Floresta já havia fundado, há um ano, o Colégio Augusto e editava pela terceira vez Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens, sem jamais ter voltado a Papari (Hoje Nísia Floresta).
Nísia Floresta já era mãe e mulher amadurecida, professora de francês, latim e italiano. Tinha 29 anos, vividos entre Goiânia, Recife, Olinda e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Em 1859, Isabel Gondim contava 20 anos de idade e Nísia Floresta 49 anos. Ambas eram separadas por uma enorme distância geográfica e cultural. Nísia Floresta já era autora de vários artigos jornalísticos e livros, somados à experiência de uma viagem à França – o berço da cultura na época.
Com certeza a ingênua e criativa moça cresceu ouvindo estórias do tipo das que até hoje, infelizmente, perduram em Nísia Floresta, junto às fábulas dos Irmãos Grimm. Quando falavam da pequena moça que casou-se e separou-se aos 13 anos, era poliglota, liberal como o pai Dionísio, e andava pelo mundo, com certeza Isabel Gondim comportava-se como a pequena criança de hoje que arregala os olhos e imagina mil cenas ao ouvir a história de Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mal.
Convém lembrar-se dos infinitos tabus que imperavam junto às famílias tradicionais da época. Com Isabel Gondim não poderia ser diferente.
As mil estórias que ela ouvia sobre Nísia Floresta foram suficientes para mais tarde, quando escreveu tal carta, fazer valer sua imaginação fértil, incrustada numa cultura provinciana, que estava anos-luz do cotidiano de Nísia Floresta.
O incrível é entender como uma pessoa que nunca viu outra pôde tecer comentários escabrosos, detalhistas e com tanta propriedade como fez Isabel Gondim, a ponto de torná-la com sua pena e sua negra tinta, uma mulher vulgar.
O que penso e o que com certeza todo estudioso da vida e da obra de Nísia Floresta percebe, é que o que se passou com Isabel Gondim foi nada mais do que uma tirana inveja. O grande mal da humanidade.
Nísia Floresta deixou em tudo o que escreveu traços de um espírito superior e magnânimo. Creio que Isabel Gondim queria ter o mesmo nível intelectual de Nísia Floresta e, no íntimo era uma admiradora não assumida. Essa prática é muito comum no meio intelectual e artístico: a admiração se transforma num ódio gratuito e incubado. A literatura psiquiátrica explica isso de uma forma muito interessante. O invejoso não se permite aplaudir no outro aquilo que ele queria ter feito e, impedido por sua insatisfação, finda desmerecendo, denegrindo, enfim tentando ofuscar o êxito de terceiros.
Há um detalhe muito curioso com relação à semelhança de títulos de dois livros escritos por Isabel Gondim: Reflexões às minhas alumnas (RJ: 1874 e Natal: 1879) e O Brasil: Poema Histórico do Paiz (Natal: 1903 e RJ: 1913).
É lamentável saber que muitas pessoas – por mera curiosidade – preferem conhecer a carta de Isabel Gondim, relegando o legado riquíssimo de Nísia Floresta. É exatamente essa curiosidade de conhecer esses reles documento que colabora com das lendas – e com o mito.
Se lermos o livro A Mulher, escrito por Nísia Floresta e em seguida lermos a carta de Isabel Gondim, ficaremos com a mente em parafusos, pois no livro há muita maturidade, sensatez, idoneidade, enfim uma gama de qualidades que só uma mulher muito experiente e sábia poderia ter – longe de uma “puta erudita” – longe de uma “mulher de vida livre” – como foi rotulada. A Mulher nos faz perceber a grande sensibilidade de Nísia Floresta. Vejamos um trecho:

“Filha! amai e respeitai vossos pais, não por uma fórmula de obediência vulgar, mas por um sagrado dever, tão grato de cumprir para com os meigos protetores de nossa infância, os guias vigilantes dos nossos primeiros passos no caminho da vida, para os quais não poderemos ter tanto desvelo e tanta afeição com que lhes agradeçamos o muitíssimo que fizeram por nós.” [A Mulher, PÁG...]

E mais adiante, num estilo aparentemente careta e conservador, aos olhos da atualidade, ela diz:

“Esposa! Conservai intacta a fé que jurastes ao homem que escolhestes, e procurai dar-lhe prova (primeiramente com uma doçura cheia de dignidade, depois de uma verdadeira e terna solicitude, a buscar tudo quanto lhe seja útil e agradável) – de que sois para ele, não já um objeto de recreio, mas uma amiga circunspecta e dedicada, uma companheira inseparável e necessária à sua vida, em qualquer circunstância; nem vos esqueçais um só momento deste já conhecido, mas sempre novo axioma: a honestidade da mulher é perpétuo ornamento da família; a honestidade da mãe sempre faz parte do dote das filhas; a honestidade na mulher sempre foi mais prezada que qualquer outra formosura.” [Cf A Mulher]

É antagônico que uma mulher que pensasse assim, pudesse ter exposto os seus seios sobre uma mesa durante uma festa em São José de Mipibu, conforme escreveu Isabel Gondim. Isso soa estranho mesmo nos dias atuais.
Um detalhe importantíssimo em algumas das suas obras se refere ao grande enfoque que ela dava à amamentação, a propósito podemos denominá-la, sem dúvida, a precursora da campanha de aleitamento materno no Brasil, pois suas reflexões com relação a esse dever maternal eram imensas, quase uma bandeira de luta, tornando clara a sua visão acerca da família.
Logo nas primeiras páginas de A Mulher, Nísia Floresta descreve uma visita feita a uma aldeia situada a vinte léguas de Paris, onde existia um grande grupo de amas-de-leite, as quais amamentavam crianças vindas da capital. Estas sofriam as piores mazelas, inclusive muitas morriam e nem todas eram reivindicadas pelas mães.
As condições higiênicas das aldeãs eram precárias, fator intencionalmente ignorado pelas mães legítimas em detrimento da liberdade e do conforto que optavam em Paris.
De acordo com Elizabeth Badinter, em seu livro Um Amor Conquistado – O Mito do Amor Materno, de vinte e uma mil crianças nascidas em Paris em 1870, menos de mil foram amamentadas pela mãe, outras mil por uma ama a domicílio, e as demais, dezenove mil, foram enviadas para o interior para a casa de amas-de-leite.
Diante desse cenário, dentre uma série de reflexões de repúdio, Nísia Floresta diz:

“Ó mãe sem coração, que abandonais os mais sagrados deveres da natureza, destacando de vossos seios os próprios filhos, essa parte de vossa alma, para mandá-los sugar um leite estranho em alguma longínqua aldeia, onde não dais depois o ar de vossa presença! A vós, somente, eu quero narrar o que vi: ante os vossos olhos quero eu desdobrar o deplorável quadro que frangeu-me o coração, e que formará o processo verbal de vossa desnaturada face às gerações vindouras!”.

Isso tudo contrasta com a imagem que Isabel Gondim nos passa com relação à Nísia Floresta. Podemos perceber na obra nisiana traços fortes de uma mulher/ família. Um flagrante claro está em Conselhos a Minha Filha, escrito em 1842, editado como presente pela passagem dos 12 anos de sua filha Lívia Augusta.
Embora bem de acordo com a imagem idealizada da mulher na época (esposa saudosa do marido, filha querida e obediente e professora zelosa) Nísia Floresta escreve com um aspecto afetuoso, dirigindo uma série de orientações a sua filha, mostrando o comportamento ideal de uma mulher na sociedade, no namoro e no casamento. Tal livro, devido ao alto teor moral e cristão, foi adotado pelas escolas femininas católicas de Mondovi, a pedido do seu bispo. É a obra que teve maior números de reedições à época. Vejamos um trecho:

“Uma mãe é o titulo mais terno, e mais doce, que há na natureza, e o único, que exprime só todos os sentimentos d’alma, as mais sublimes, e puras afeições.
Se há no mundo um título que enobrece a mulher, é sem dúvida o de mãe; é ele que lhe dá uma verdadeira importância na sociedade. Feliz aquela que o sabe dignamente preencher sentindo toda a sua grandeza, todas as suas obrigações! Doces obrigações, cujo exercício tanto ameniza o fragoso caminho da vida, e faz suportável o peso seu à triste que a desgraça oprime!
É a ele, minha querida filha, que eu devo os únicos momentos de uma ventura real, que tenho gozado neste mundo; foi ele que me deu o gosto pelo estudo na esperança de poder gozar um dia da ventura de dar-te as primeiras lições, e que ministrou-me recursos para aplainar as terríveis dificuldades, que se opuseram a que eu me colocasse no estado de poder fazê-lo livre e decentemente, achando-me só no mundo, mulher fraca, sem apoio, sem fortuna! É enfim a ele, que tu deves tua mãe, porque ao desejo de religiosamente preenchê-lo, devo ter-me subtraído ao final desespero, a que me ia arrastando a grande! A irreparável, a nunca assaz chorada perda de teu bom pai!”“.

Outro flagrante de uma Nísia Floresta amadurecida e consciente da importância da família, muito mãe, está nestas palavras escritas pela Drª Maria Lúcia Pallares Burke, professora da Universidade de São Paulo, ao fazer a apresentação da reedição do livro Fragmentos de Uma Obra Inédita – Notas Biográficas, organizada por Nathalye Bernardo Câmara:

“Último livro que Nísia publicou, nele de certo modo encontram-se acentuadas certas características presentes de forma mais diluída em suas outras obras. A vivida e até pungente exposição de seu estado emocional, algo que transparece freqüentemente nos escritos de Nísia, adquirir nos fragmentos... uma dimensão muito mais ampla. O tema central do livro – louvação e sabedoria do irmão, filósofo e professor e advogado Joaquim Pinto Brazil, então recentemente falecido – serve de ocasião para que Nísia se deixe levar pela dor da separação e pelas angústias que as lembranças familiares lhe trazem. A afeição de Nísia, dividida entre sua família e sua pátria, de um lado, e a Europa e sua civilização, de outro, fica igualmente acentuada nessa espécie de balanço final da vida de exílio voluntário que escolhera”.

Por defender a mulher, Nísia Floresta não quis ofuscar o sexo dominante, mas comprovar a inteligência da mulher, reivindicando também que ao lado de grandes homens existem grandes mulheres. Por ironia, não podemos negar que a própria mitificação que acercou Nísia Floresta, seja através de Isabel Gondim, Pignatari, Maria José Tarube, Socorro Trindade ou dos artigos anônimos dos jornais do Rio de Janeiro, somados ao que falam os seus conterrâneos, instigaram muitos a estudar sua vida e sua obra. Parece contradição essa afirmação quando já foi dito que é importante matar o mito, mas essa “contradição” se explica quando comparamos o mito Nísia Floresta ao caso da tragédia do dia 11 de setembro de 2001, no World Trade Center. De uma hora para a outra, o Oriente Médio e o Islamismo passaram a ter outro nome: Osama Bin Laden, o qual foi considerado por muitos profetas: “o demônio encarnado na terra”. Observando uma fotografia da década de 70, a qual registra parte do clã Laden, feita na Suécia, jamais seria possível perceber que um adolescente feliz e sorridente, trajando roupas ocidentais, é (pasmem!) o Osama Bin Laden que arquitetou a derrubada das Torres Gêmea de Nova Iorque. A foto mostra todos sorridentes e com estilo avesso aos padrões muçulmanos [Cf. Veja, 3.10.200, págs. 96/97].
Na realidade, Osama Bin Laden é um homem normal como qualquer outro, porém, instigado por um ódio histórico, fruto do fundamentalismo xiita – o que dá aos seguidores a estranha liberdade de acreditar que aquilo é feito em nome de Alah (Deus) e pelo pedantismo do povo norte-americano – se vê no direito de matar incontáveis cristãos.
Hoje, Osama Bin Laden é um “demônio - vivo”. Um mito terrível. Que inclusive sumiu do mapa.
Nunca o mundo leu tanto sobre o Islamismo e sobre o Oriente Médio como na época desta catástrofe. Com certeza todos aprenderam que não era nada do que pensavam, pois o islamismo não condiz com o que os xiitas praticam. Trata-se de um fanatismo extremo. Mas com certeza muitos viam o Islamismo como algo terrível e amedrontador. Podemos crer que a mídia foi o instrumento da desmistificação (ou pelo menos tentou). Comparando, constatamos que a carta de Isabel Gondim cumpriu o papel da mídia – mas da mídia podre – que faz maquiagem na notícia. Isabel Gondim, portanto, quis matar, mas curou, pois criou um documento que acabou por atrair estudiosos a pesquisar sobre Nísia Floresta.
Aos olhos da atualidade, essa imagem mitológica deve ser destruída a bem da história como instrumento de educação, o que é uma tarefa morosa diante da nossa cultura, a qual ainda conserva o ranço do disse-me-disse. O passo mais importante deve partir das escolas e instituições educacionais e culturais, as quais devem fomentar o estudo acerca de Nísia Floresta de uma maneira dinâmica e contínua. As secretarias de educação devem repensar esse assunto e criar uma programação curricular que valorize sua vida e sua obra nos três níveis de ensino, divididos em etapas. O mesmo deveria ocorrer com Zila Mamed, Auta de Souza, Câmara Cascudo, enfim uma infinidade de figuras notáveis do Rio Grande do Norte.
Quando evocamos Nísia Floresta, embora ela tenha vivido em pleno séc. XIX, falamos de uma visionária, uma mulher que viveu à frente da sua época, pregando temas que, inclusive, alguns permanecem atuais e causam ainda certo mal estar nos governantes, como a demarcação das terras indígenas, a discriminação racial e a inferiorização da mulher no campo profissional (que hoje é algo mascarado e que ainda existe). Quando nos reportamos a Nísia Floresta, falamos da precursora do aleitamento materno no Brasil, da precursora da reforma educacional brasileira, da precursora do feminismo, da grande republicana, abolicionista, indianista, conferencista, jornalista, poeta, escritora e socióloga.
Quando falamos de Nísia Floresta, nos referimos a uma mulher culta e inteligente, cuja visão que se tinha dela não poderia ser diferente aos olhos de uma sociedade atrasadíssima.
Sua longa permanência na Europa – a ponto de ali ter morrido – não apenas denota uma paixão por esse Continente. Muito mais que isso, a Europa possuía todos os requisitos para uma mulher que pensava grande, e não via terreno igual – nem ideal – em seu país. Esse choque cultural com relação a uma Nísia Floresta visionária e um Brasil que engatinhava explica não uma fuga da sua realidade, mas a busca por um habitat à seu nível.
Apreciemos esse trecho do artigo intitulado “Nísia Floresta”, escrito pela célebre Rachel de Queiroz: “... Mas razões teria ela de sobra para adorar a França, onde convivia com literatos da maior importância ...” E mais adiante enfatizou:

“... No Brasil que vida seria a sua, naquele Rio Beato e mal arejado, onde todos os seus passos deveriam ser espiados e mal interpretados, os seus anseios literários levados a ridículo, suas ambições consideradas fora de propósito e até mesmo fora da decência”. [Revista O Cruzeiro, 15.05.1954].

Não é estranho que ela tenha sido caluniada e criticada. Por aí podemos refletir a situação da mulher que viveu no séc. XIX e constatar que, com certeza, muitas Nísias Florestas “preferiam estar em paz na sociedade”, relegando sua própria intelectualidade, vista ao preço que pagariam.
Não é também de se estranhar a visão de uma Nísia Floresta lésbica. Não por suas atitudes sexuais, mas por seu comportamento social e intelectual. Uma sociedade hipócrita e conservadora não poderia pensar diferente a respeito de uma “mulher machona” que se lançava contra tantas opressões consideradas como o padrão ideal de uma época. A denominação “Machona,” aqui exposta, é uma colocação de Gilberto Freyre em seu livro Sobrados e Mucambos, embora ele não se referisse a sexualidade, mas a atitude singular de Nísia Floresta – que era típica (em parte) dos homens. Vejamos o que ele escreveu:

“Nísia Floresta surgiu como uma exceção escandalosa. Verdadeira machona entre sinhazinhas dengosas do meado de séc.XIX. No meio dos homens dominando sozinhos todas as atividades extra-domésticas, e as próprias baronesas e viscondessas, mal sabendo escrever; dos senhores mais finos soletrando apenas livros devotos e novelas que eram quase histórias de Trancoso, causa pasmo ver uma figura como a de Nísia Floresta”. [Cf Sobrados e Mucambos, p.134].

Diferente de hoje, a mulher no séc.XIX era literalmente vigiada. Seu universo se restringia aos trabalhos domésticos. Quando saia de casa (apenas acompanhada) era para missa, batizado ou enterro . Raras estudavam. E as que o faziam aprendiam apenas as quatro operações, escrever e mais algumas disciplinas muito restritas.
Nísia Floresta foi autodidata, poliglota, filha de um intelectual. Lançou-se precocemente no universo das letras e era uma eterna estudiosa. Já após certa idade estudou homeopatia. Em seu texto Viagem Magnética, de 1859, revela conhecimentos de experiências envolvendo magnetismo, fluídos, sono clarividente, controle da mente e hipnotismo. Assuntos ultramodernos. Para quem vê Nísia Floresta como uma novidade nos dias de hoje, pode até imaginar que se tratava de uma louca ou uma desocupada, dada a sua busca constante por tudo o que era novo. Ela, também, investigava temas que lhe eram desconhecidos. Na Europa freqüentou uma infinidade de cursos e conferências. Sobretudo sempre foi uma pessoa muito bem informada. Se estava na Europa sabia o que se passava no Brasil e vice-versa, estando sempre inteirada dos lançamentos literários da Europa e do Brasil.
Também não era estranho que uma mulher de um nível intelectual tão elevado possuísse em seu rol de amizade apenas homem, prova disso são os livros de história, literatura, etc., os quais destacam apenas homens em sua grande maioria. Quando tratam de mulheres referem-se a fatos que podemos dizer exceções, tipo Ana Jansen, Clara Camarão, Anita Garibaldi, etc.
Na Europa, Continente que era o berço da cultura, ela conheceu grandes intelectuais, como: Alexandre Herculano, Duvernoy, Castilho, Manzoni, Lamartine, Auguste Comte, e outros, dentre viscondes, barões e diversos homens de letras que obviamente viam-na com admiração e respeito, pois tratava-se de uma figura singular. Isso não foi diferente do Brasil, em se tratando de contatos masculinos. Com certeza, Nísia Floresta não somente aprendeu com seus contemporâneos europeus, mas transmitiu muita sabedoria.
Nísia Floresta, como ela mesma relata, teve diversas amigas, normalmente esposas desses homens importantes que conhecera, dentre outras, a propósito sempre se referia a essas acompanhantes, as quais logicamente se dispunham a ser sua cicerone nos lugares que ela não conhecia. Comumente ela se referia a tais amigas mencionando apenas as iniciais do primeiro nome. CITAR TRECHO
Fora do país ela não recebeu os rótulos que recebeu no Brasil, mesmo sendo a mesma pessoa e em pleno exercício das suas atividades intelectuais, as quais ali não causavam escândalo como no Brasil. A denominação: lésbica, dada por Maria José Tarube, denuncia um proceder machista, incrustado até nas próprias mulheres. O que ocorreu foi que Nísia Floresta era uma exceção entre as mulheres, as quais não podiam compreendê-la – ou pelo menos não era permitido que elas a compreendessem.
Por lutar a favor do reconhecimento feminino e de uma nova visão política, educacional, moral e social, ela distanciou-se das amizades femininas. Isso reforça o que escreveu Gilberto Freyre: “causa pasmo ver uma figura como Nísia Floresta”. Que mulher se colocaria ao lado de Nísia Floresta, mesmo sabendo que ela lutava a favor de direitos iguais para o sexo feminino? Uma mulher comum jamais ousaria colocar em cheque a sua respeitabilidade, pois mesmo que a luta fosse justa, o preço era alto. Mesmo não devendo nada, ela seria vítima do olhar maligno da sociedade, podendo receber o mesmo tratamento dado a Nísia Floresta.
Devemos entender também outro lado dessa questão da rejeição para com Nísia Floresta pelas próprias mulheres. O que se poderia esperar das mulheres ingênuas, sem idéias próprias, fruto do sistema dominante? Com certeza estas viam Nísia Floresta como uma insana que queria se meter em coisas de homem.
A imagem de uma Nísia Floresta persona non grata, “puta erudita”, “indecorosa” “mulher de vida livre”... assim o era simplesmente por sua intelectualidade – nada mais. Sua genialidade, somada a coragem de expô-la à sociedade, consistiam no seu único “crime”.
Quando Nísia Floresta, autodidata (lembremos) fundou o Colégio Augusto, em 1838, causou insatisfação na maioria dos diretores das escolas do Rio de Janeiro, quase todos estrangeiros, possuidores de afamados títulos.
O Colégio Augusto, cheio de inovações, logo tornou-se muito comentado. Os conservadores viam-no com certa desconfiança, obviamente, entretanto os liberais “em número menor” viam-no com simpatia, ciosos de que houvesse uma transformação na educação do sexo feminino.
Nísia Floresta, audaciosa, implantou disciplinas que eram típicas dos colégios masculinos, inclusive idiomas estrangeiros, educação física; aboliu o uso do espartilho, reduziu o número de alunos por turmas, dentre outras propostas educacionais. Como educadora, ela organizava grandes eventos: palestras, concursos, recitais, declamações; premiava as melhores colocadas.
O seu pensamento inovador era naturalmente transmitido às alunas nas mínimas atividades, e mesmo nas simples conversas do cotidiano da escola. Ela sabia que estava plantando sementes que germinariam, e, portanto precisavam ser bem regadas, pois a oportunidade de estar com aquelas crianças (privilegiadas) poderia ser curta.
Algumas autoridades estrangeiras que visitavam o Brasil ficavam encantadas com as alunas do Colégio Augusto, as quais recitavam versos no idioma do visitante.
Não demorou muito para que surgissem diversos artigos anônimos nos principais jornais do Rio de Janeiro, criticando as novidades do Colégio Augusto e, não obstante, faziam insinuações e colocações abomináveis acerca da vida particular de Nísia Floresta. A acusação mais branda dizia que ela se encontrava no Rio de Janeiro escondida atrás de um pseudônimo, para não ser descoberta pelo marido, o qual afirmavam estar a sua procura por ter sido abandonado no Norte (o artigo realmente cita Norte – o que é um lapso que perdura até hoje, quando pessoas de outra região querem se referir ao Nordeste).
Lembremos que para os padrões da época, separar-se do marido consistia num terrível escândalo e dava margem aos piores comentários. O “escândalo” era social e nem tanto familiar, portanto todas as línguas, apimentadíssimas, pululavam no céu da boca. As próprias tias de Nísia Floresta, de Goianinha, irmãs de sua mãe, dona Antonia Clara Freire, abominaram a atitude da sobrinha “desordeira”, deixando de visitá-la quando sua família ainda morava em Papari. Um típico sinal de protesto.
Tais artigos anônimos simplesmente engrossavam o caldo calúnia. E seria difícil, como escreveu Rachel de Queiroz, uma pessoa como Nísia Floresta esconder-se numa pequena província como o Rio de Janeiro da sua época, com ou sem pseudônimo, sobretudo, pelo que somos levados a absorver quanto ao caráter e a personalidade forte de Nísia Floresta, é improvável que ela se preocupasse em se esconder.
Somos levados a acreditar que os autores dos referidos artigos anônimos, principalmente este com relação à suposta perseguição encampada pelo marido de Nísia Floresta, era um diretor de escola, cheio de ambição ...e inveja. Ele quis trazer à tona o passado de Nísia Floresta, sabendo o que esse passado representaria para a mentalidade da época. Essa informação facilmente denegriria a imagem da diretora. E bastava, pois era questionável uma mulher, separada do marido, estar à frente de. um colégio para meninas, sobretudo os seus 28 anos de idade soavam, para complementar, como imaturidade e inexperiência.
O ato da separação consistia em delito para as leis da época. Que moral Nísia Floresta teria para educar justamente meninas, as quais eram educadas num padrão de submissão e de inúmeros tabus? O que o autor “anônimo” se esqueceu foi de acrescentar que ela teve um segundo casamento e ficara viúva. Essa segunda colocação ia contra os interesses de quem queria apenas desmoralizá-la.
O curioso era que Nísia Floresta, que estava muita acima de qualquer crítica, e num estágio de grande maturidade intelectual e pessoal, nunca se preocupou em contestar. Ela jamais publicou uma resposta, o que pode muito bem se justificar no velho ditado: “Quem cala consente”. Mas o seu silêncio, ao contrário disso, revelava uma superioridade muito grande. As preocupações de Nísia Floresta estavam anos-luz de se resumirem a coisas tão pequenas e, de certo modo, insignificantes.
Sua genialidade não estava restrita apenas a pessoa dela. Percebemos isso na sua própria família. Seu irmão Joaquim Pinto Brasil, ingressou na Faculdade de Direito de Olinda com apenas 14 anos, concluindo em 1840. Era um homem altamente culto e profundamente versado em filosofia, tendo, inclusive fundado o instituto psicológico no Rio de Janeiro, em 1849. Foi quase exclusivamente educador. Possuiu colégios em Resende, Cabo Frio, São Fidélis, recebendo visita do Conde d’Eu. Ao contrário das difamações que recebeu sua mãe nos principais jornais do Rio de Janeiro, foram encontrados nesses mesmos jornais testemunhos de apreço e reconhecimento ao Dr. Brasil (como ele era conhecido) inclusive foi professor de Washington Luiz, que mais tarde viria a ser Presidente da República. Joaquim foi também chefe de Secretaria do Ministério da Agricultura.
Seu filho Augusto Américo de Faria Rocha foi educador no Rio de Janeiro, dirigiu durante muitos anos o conceituado Colégio Santo Agostinho, entregando sua direção para fundar um colégio com o seu nome. Faleceu em 1891, aos 58 anos, sem deixar filhos.
Lívia Augusta de Faria Rocha não teve relação pública com o mundo das letras, embora tenha sido muito culta. Foi uma filha muito presente, traduzindo inclusive alguns livros de sua mãe para o inglês. Viúva após quatro anos de casada veio a falecer em 1912, em Cannes, quase octogenária, com o sobrenome Gade, sem nunca ter se casado novamente. Está sepultada no mesmo jazigo que acolheu Nísia Floresta por algum tempo
O que podemos perceber é que Nísia Floresta tinha um senso maternal muito forte e que, independente da viuvez, educou os filhos de maneira exemplar, nutrindo por eles e pelo irmão uma eterna preocupação.
O livro Uma Viagem Pelo Arquivo Epistolar de Adauto Câmara, de Raimundo Soares de Brito, traz uma carta que Eloy de Souza escreveu a Henrique, em Natal, no dia 8 de abril de 1931. O segundo parágrafo diz:

“Nossa terra está esperando mais uma seca. Os sertanejos estão mesmo certos de que essa calamidade será inevitável. Se os vaticínios se confirmarem não sei o que será de nós. (2) Estamos esperando os seus livros sobre Nísia (3) e Miguelinho. (4) Sei, receberão nota ótima acompanhada pelos louvores dos conterrâneos”. [p.29].

Na nota de rodapé, Raimundo Soares explica:

“(3) NÍSIA FLORESTA BRASILEIRA AUGUSTA – (1810-1885), ‘a mais destacada mulher de letras brasileira do século passado’ – no conceito de Veríssimo de Melo. Nasceu em Papari, hoje Nísia Floresta em sua homenagem. Viajando pelo exterior (Itália e França), convivendo com personagens famosos, escreveu livros. Dizem que Nísia foi a paixão intelectual de Henrique Castriciano. Levou vários anos da sua vida pesquisando a personalidade da notável conterrânea com o objetivo de escrever um livro sobre as suas atividades. Não o fez. Transferiu a tarefa e todo o acervo de pesquisas a Adauto da Câmara. Com ele, Adauto escreveu a “História de Nísia Floresta. ’ [p.30].

“História de Nísia Floresta” viria a ser publicada somente em 1941, no Rio de Janeiro, pela Editora Pongetti. Por muitos anos consistiu no mais rico e importante trabalho escrito sobre Nísia Floresta, inclusive é até hoje a estrutura fundamental para todos aqueles que a pesquisam.
Em 1909 foi inaugurado em Natal o Congresso Literário, o qual manteve contato com Lívia Augusta em Cannes. Na ocasião, ela forneceu todas as lembranças que tinha sobre sua mãe. Cabia ao Governo do Rio Grande do Norte ter dado apoio integral ao referido congresso, inclusive propondo a ela, oficialmente, a doação de todos os bens da família, os quais seriam locomovidos ao Brasil no ato da sua morte. Se isso tivesse acontecido, com certeza teríamos, hoje, um museu com objetos que fizeram parte do universo de Nísia Floresta. Infelizmente a coisa não foi feita como devia. E agora é tarde.
Essa omissão é imperdoável, pois após uma busca incontinenti, (e frutífera) encampada pelo Congresso Literário, e, posteriormente, por Henrique Castriciano,– o Governo viu diante de si um tesouro incalculável ... e deixou-o escapar-se entre os dedos.
Resta-nos estudar a vida e a obra de Nísia floresta. Assim estaremos conhecendo um dos maiores gênios do Rio Grande do Norte, resgatando e preservando a sua memória. Convém relembrar que alguns órgãos públicos colaboram com o alheamento dado a Nísia Floresta.
Falta maior compromisso com relação à sua memória, embora, obviamente isso não ocorra apenas com Nísia Floresta.
Não podemos culpar a sociedade por desconhecer os nossos vultos históricos, se alguns órgãos públicos, donos de todas as armas, não possibilitam meios para que essa sociedade tenha acesso a livros, conferências, simpósios, colóquios, saraus, documentários, curtas e longas-metragens, enfim é necessário que as instituições competentes (todas) criem meios de educar verdadeiramente. Para isso é necessário um grande investimento.
Enquanto essa utopia vigora, aqueles que conhecem Nísia Floresta e tantas outras figuras notáveis do Rio Grande do Norte, estado que é celeiro de inúmeras figuras ilustres, precursoras de tantas causas não só no Brasil como na América Latina , poderão dizer que são privilegiadas.
Esporadicamente ouvimos dizer que está sendo lançado um livro sobre Nísia Floresta, uma reedição da sua obra em andamento, um curta-metragem, que houve uma conferência, que saiu algo interessante em determinado jornal, inclusive em outros estados brasileiros, etc. Entretanto tudo ainda permanece restrito. Muita coisa emperra por falta de valorização e até mesmo de desconhecimento pelas autoridades.
Nísia Floresta não é um mito, é um gênio – um gênio real, porém enquanto perdurar a maneira deturpada de vê-la, bem como o descaso público quanto a sua obra, a carta de Isabel continuará sendo história real.


Nísia Floresta, 1998

Luís Carlos Freire











Nenhum comentário:

Postar um comentário