sábado, 7 de março de 2009


“PIRÃO BEM MOLE”

O "PIRÃO BEM MOLE" é um antiqüíssimo drama, provavelmente de origem portuguesa. Infelizmente a historiografia folclórica brasileira não registra esse folguedo e tampouco fala de sua gênese. Em 1992, quando visitei o município de Nísia Floresta pela primeira vez, fui informado pela estudante Edna Trindade, que existia na comunidade do Porto o referido drama. Fui até a casa de d. Raimunda (70 anos à época), uma das protagonistas. Ela atendeu-me acanhada. Apresentei-me, expliquei as razões que me levavam até sua casa. Insisti para que exibisse o drama na Yayá Paiva (principal escola municipal), mas ela foi ENFÁTICA AO DIZER que "o povo mangava", (mangar, na linguagem regional nordestina significa debochar), portanto não empreenderia novas exibições. Ressaltou que os nativos não valorizavam as apresentações, chamando-as de “brega”, “coisa de 12” (regionalismo que significa: coisa velha). Sobre isso, salientei que infelizmente é muito comum as pessoas fazerem uso do velho dito: “santo de casa não faz milagre”, mas isso sinalizava uma questão de cultura e educação pessoal de cada qual; ademais não poderíamos condenar essas pessoas, pois não aprenderam a dar valor a suas raízes – a sua identidade. E mais: a ausência de políticas públicas contínuas, voltadas para o resgate e a revitalização de folguedos populares, faz com que muitas pessoas rejeitem e até mesmo sintam vergonha (já vi casos assim) da sua própria cultura.
Esse comportamento deplorável colabora muito com a decadência e até mesmo a extinção de muitos elementos culturais do nosso país.
Sobre o drama em si, d. Raimunda explicou que era protagonizado por ela (no papel de mãe) e por Salete (48 anos à época) uma vizinha (no papel de filho). Com relação às origens, destacou que aprendeu a letra do “Pirão Bem Mole” em 1934, aos 12 anos, em Tororomba, enquanto aluna da professora “BILUCA GADELHA”, uma senhora idosa e solteira, a qual ensinava a letra do folguedo, mas não o dramatizava, como faz d. Raimunda (infelizmente não consegui muitas informações sobre esta velha mestra). Lembrou que sua avó também conhecia a referida letra, dentre outras, ensinando-as em sua infância. Salientou que gostava muito de desempenhar papéis nos inúmeros dramas, tão comuns à época, principalmente na escola e nos festejos religiosos. Na realidade, D. Raimunda guarda em seu baú da memória um repertório de canções de grande beleza e significância histórica, como “BELAS PASTORAS”, que nos reporta às canções da Península Ibérica (a letra, de cunho moralista, fomenta a altivez da pastora, a qual renega o romance com fins mercenários). Trata-se da estória de um rei que se dirige a uma pastora para pedi-la em casamento, mas, ao invés de fazer uma declaração de amor com palavras mais românticas, vai logo oferecendo-a o seu palácio. Como resposta recebe a pronta rejeição. Há também “Pà Rà Pà PÔ, de cunho humorístico. A graciosidade da plástica principalmente de D. Raimunda é o grande mote das exibições, inspirando aplausos a todo instante. Trineta de índios e tataraneta de escravos, d. Raimunda se auto-proclama “Cabocla”, mas não é difícil perceber os traços impregnados nas inúmeras veredas sulcadas em seu rosto. Rosto lindo e cheio de história... verdadeiras odisséias.
Com tantas canções poderíamos perguntar: “Por que o grupo é chamado “PIRÃO BEM MOLE” e não “Pà Rà Pà PÔ ou “BELAS PASTORAS” É fácil entender. Trata-se do drama principal e mais conhecido, inclusive muitas vezes a dupla sai para exibir apenas o referido drama. Mas então, o que é o ‘PIRÃO BEM MOLE”? Vamos começar pela letra:

FALA DE D. RAIMUNDA (MÃE):
“Eu tenho duzentos anos,
Ainda sou bem mocinha
Meu filho arruma um marido
Prá casar sua mãezinha

Refrão: FALA DAS DUAS

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

FALA DE SALETE (FILHO)
Ô mamãe ó que pecado,
Cuide logo em confessar.
A senhora tão velhinha
Ainda pensa em se casar

Refrão: FALA DAS DUAS

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

FALA DE D. RAIMUNDA:
Ô filho amaldiçoado,
Não lhe boto mais a benção.
Meu filho arranje um marido,
Ai que dor no coração!

Refrão: FALA DAS DUAS

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

FALA DE SALETE (FILHO)
Escrever

FALA DE D. RAIMUNDA:
Eu gosto do pirão bem mole,
Esquentado na gordura.
Eu sou uma velha sem dente,
Mais ainda como carne dura!

Refrão: FALA DAS DUAS
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole,
Ô pirão bem mole
Prá nós dançar!

BELAS PASTORAS


Belas pastoras
Eu vim lhe falar
Se queres casar comigo.
Belas pastoras
Eu vim lhe falar
Se queres casar comigo.

Prá ser rainha do palácio
E morar no meu paraíso.
Prá ser rainha do palácio
E morar no meu paraíso.

Não quero a sua riqueza,
Nem mesmo a sua fidalguia.
Não quero a sua riqueza,
Nem mesmo a sua fidalguia.

Nem o seu rico tesouro,
Nem vou prá sua companhia.
Nem o seu rico tesouro,
Nem vou prá sua companhia.


Como se pode perceber, a letra é de puro humor. Agora vamos nos voltar à história da dupla PIRÃO BEM MOLE.
Em 1980 as animadoras culturais do Porto, senhoras EDITE MARQUES (in memorian – ----) e TEREZINHA LEITE (in memorian – 1987), percebendo o talento de D. Raimunda, convidou D. Salete e formou a dupla, preparando-a para apresentar na FESTA DOS PADROEIROS “TODOS OS SANTOS”, do Porto. A escolha do drama PIRÃO BEM MOLE ficou à critério de D. Raimunda e logo agradou as animadoras. A apresentação deu-se da melhor forma, mas passou despercebida, fazendo jus ao velho ditado; “Santo de casa não faz milagres”.
Por insistência das formadoras da dupla, ocorreram mais algumas apresentações em outros momentos. Uma no PAEM (antiga Secretaria Municipal de Educação) e outra durante a Festa das Mães, no Porto, ao longo de três anos. Mas como as pessoas “mangavam” (como elas próprias insistem em lembrar), pararam de se apresentar. Foi aí que entrei em cena, em 1992, ao saber da existência desse tesouro quase sepultado.
Após a localização de d. Raimunda e Salete, fiz várias visitas, insisti, expliquei sobre a importância cultural/histórica daquele trabalho tão bonito. Que só elas eram capazes de continuar e assinalar essa marca tão bonita na história. Que ambas integravam o folclore nisiaflorestense.
Não sei se foi minha insistência ou outro fator, mas a dupla acabou sensibilizando-se (ou cedendo). Imediatamente comprei o material e procurei d. Marlene (do Alto Monte Hermínio), uma grande costureira de Nísia Floresta, a qual fez uma blusa de cetim, cor de goiaba com gola em veludo preto com detalhes dourados e uma saia cor de vinho. Na cabeça um turbante da cor da blusa e várias bijouterias (estas segundo a criatividade dela, pois é muito vaidosa quando sai de casa). D. Salete serviu-se de uma calça masculina, um terno e um chapéu. Atualmente passou a usar short e camisa de mangas compridas. Nos três dramas supracitados a vestimenta é a mesma.
Assim que elas disseram “sim” levei-as para apresentar-se na EMYP. Posteriormente exibiram-se na Concha Acústica da UFRN, na ocasião em que assumi a presidência do Centro Acadêmico “Rosângela Guerra”, da UFRN, inclusive levei também um grupo de alunos que apresentou algumas danças folclóricas. Depois seguiram-se outras exibições em Natal, Parnamirim, São José de Mipibu e em Nísia Floresta.
Em 2003 a professora Francinete, da UNP, do curso de Letras, juntamente com uma turma de acadêmicos, deslocou-se para Nísia Floresta e contemplaram o PIRÃO BEM MOLE dentre suas pesquisas folclóricas. Nessa época fui convidado pela referida professora para dar uma palestra sobre a intelectual Nísia Floresta para a sua turma, seguida por outra no Centro de Tradições Gaúchas, em Ponta Negra.
A partir de então o PIRÃO BEM MOLE tornou-se uma instituição. Hoje é impossível falar de patrimônio intangível sem se reportar ao PIRÃO BEM MOLE de Nísia Floresta. Trata-se de uma manifestação popular genuína e singular. A dupla é procurada por estudantes e professores de várias escolas e universidades da região e têm se apresentado constantemente, inclusive são convidadas de honra do FESTIVAL DE CULTURA POPULAR, realizado anualmente em São José de Mipibu, presidido por José Amauri Freire.

D. Raimunda nasceu em Nísia Floresta no dia 23 de outubro de 1922. É viúva do Sr. Geraldo Alves da Cruz. Filha de Amália do Nascimento e José Antonio do Nascimento. Atualmente com 87 anos, não tem a mesma destreza de antes. Às vezes dá sinais de cansaço, rompantes de perda de voz e leve desequilíbrio físico (algumas vezes), precisando da atenção constante durante a exibição. Suas filhas e netas, ao serem indagadas sobre quem futuramente dará continuidade ao drama, são unânimes em dizer que não têm vontade. As netas, principalmente, têm recebido grande estímulo da minha parte, mas permanecem inflexíveis.
Maria Salete Cordeiro nasceu em Nísia Floresta no dia 14 de julho de 1944. É viúva do Sr. .....................Xavier. Filha de Antonio Cordeiro e Maria das Dores de Andrade. Atualmente está com 65 anos, desfruta de boa saúde. O desinteresse em dar continuidade ao drama também é realidade por parte de suas filhas.
Raimunda e Salete são donas de casa, residem no Porto e são vizinhas.
É importante que a sociedade aplauda, elogie, divulgue e incentive o “PIRÃO BEM MOLE”, estimulando seus familiares a escolherem os futuros continuadores. Minha esperança é grande em ver esse tesouro continuar desenterrado.

Nenhum comentário:

Postar um comentário